Basta andar pela cidade para encontrar desde fábrica de ração e lojas de roupa country a lavouras e rebanhos bovinos
Aos 124 anos de criação, Campo Grande ainda conserva o seu lado agro. Mesmo com toda a tecnologia que o século 21 trouxe para o dia a dia das pessoas, a cidade contempla muito mais características da zona rural do que os moradores possam imaginar.
Basta percorrer os quatro cantos da capital sul-mato-grossense para, com toda a certeza, encontrar fábricas de ração animal, comércios de produtos veterinários e até lojas especializadas em artigos para vaqueiros e vaqueiras, que vão desde chapéu, calça jeans, botas e botinas a fivelas e cintos.
Também temos haras para a criação de cavalos de raça, criações de bovinos, galinhas, carneiros, cabritos e até porcos, plantações de soja, milho, hortaliças e frutas das mais variadas e inúmeros espaços para a realização de leilões de animais, enfim, uma infinidade de segmentos tão comuns a fazendas ou algumas cidades do interior, mas que estão logo ali em Campo Grande, e ninguém se atentou ainda.
Nada que surpreenda os moradores mais antigos da Capital. Afinal, o que podemos esperar de uma cidade em que um dos seus símbolos mais conhecidos é um carro de boi? Transporte, aliás, que veio com os fundadores de Campo Grande, ganhando uma justa homenagem em frente ao Horto Florestal.
Tudo convivendo harmonicamente – pelo menos por enquanto – entre os inúmeros edifícios que não param de se multiplicar, tanto no Centro quanto nos bairros, fazendo com que o agro ainda faça parte do dia a dia de Campo Grande, contribuindo até para a sua economia.
Para o sociólogo Guilherme Rodrigues Passamani, professor da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), a raiz agro não é uma particularidade exclusiva a Campo Grande.
“É uma dinâmica que está além, é um processo mais amplo, podendo ser encontrado em outras grandes cidades da Região Centro-Oeste ou em qualquer outro lugar do Brasil. Por isso, acredito que isso depende mais do contexto histórico de constituição dessas localidades do que propriamente do fato de ser uma cidade do interior ou uma capital”, analisou.
“Eu acho que não há uma quebra entre o rural e o urbano, mas um processo gradual de que esse rural vai se urbanizando e esses elementos do mundo rural vão sendo percebidos no contexto urbano. Também, muitos elementos do contexto urbano vão se apresentar no mundo rural”
– Guilherme Passamani, sociólogo e professor da UFMS
Passamani reforçou que isso é uma questão que envolve todo o processo de colonização do Centro-Oeste brasileiro, o qual se constituiu com uma disposição para a produção agropecuária. Isso não tem relação apenas a Campo Grande, mas com cidades do oeste paranaense e até de Rondônia.
“Se você pensar nas capitais, elas são muito parecidas. Goiânia, a capital de Goiás, e Campo Grande têm as suas especificidades para o lado rural, porque a matriz econômica dessa região vem da produção agropecuária”, argumentou.
Urbanidade
Passamani acrescentou que nesse universo da ruralidade também se desenvolve a urbanidade, mas que, no caso, é um processo de urbanização calcado em uma matriz econômica oriunda do mundo rural – portanto, tem a especificidade da produção agropecuária.
“É um processo que vai ser muito mais difícil da cidade se urbanizar a partir de um outro imaginário. Por quê? Porque esse outro imaginário não existe nessa região, o imaginário que existe aqui é esse. Ou seja, o crescimento econômico a partir desse ramo agropecuário”, ressaltou.
Por esse contexto, o sociólogo analisou que até é possível surgir aspectos diferentes, mas que esse processo será mais lento ou terá particularidades em relação às cidades que são polos industriais, por exemplo.
“Campo Grande não é um polo industrial. Ela está desenvolvendo um setor de serviços interessante, mas o que move ainda é o dinheiro que vem do mundo rural, e aí seria muito difícil que esse dinheiro vindo desse universo construísse na cidade um imaginário que não tivesse intimamente associado a ele. Então, a forma como a cidade se organiza, como as pessoas se relacionam, as relações culturais que a gente poderia chamar de hegemônicas que circulam na cidade, elas também estão associadas a isso. Elas também estão, elas também vocalizam esse imaginário”, assegurou.
Dicotomia
Na visão do professor universitário, a Região Centro-Oeste segue, social e culturalmente, muito com a sua matriz econômica mais hegemônica: o agro.
“A questão é que isso está em disputa. Não é alguma coisa hegemônica, não é alguma coisa imutável, parada no tempo, ela também se transforma. Outros ramos da economia podem começar a ganhar importância, o turismo, a circulação de pessoas, os serviços e até mesmo a indústria. Isso pode provocar no futuro alterações como certamente hoje já provoca em relação ao passado, porque mesmo o agronegócio vai se transformando, vai se modernizando”, projetou.
Passamani complementou que há disputas no meio de tudo isso, mas que essas estão menos ligadas a uma dicotomia interior-capital, e sim ao processo que envolve a matriz econômica que se desenvolve de forma hegemônica no mundo rural – e no mundo rural, essa matriz é a agropecuária.
“Eu também não sei se tem uma dicotomia rural-urbano ou se é um gradiente, que esse rural vai se urbanizando. Eu acho que não há uma quebra entre o rural e o urbano, mas um processo gradual de que esse rural vai se urbanizando e esses elementos do mundo rural vão sendo percebidos no contexto urbano. Também, muitos elementos do contexto urbano vão se apresentar no mundo rural. Acho que funciona por aí, não penso em dicotomias estanques, mas em processos intimamente relacionados. Não penso que seja uma particularidade de Campo Grande, mas uma realidade de todo o lugar que tem essa matriz econômica [voltada à] agropecuária”, finalizou.
Análise
Sociólogo diz que o rural está em toda cidade
O doutor em Sociologia Ricardo Luiz Cruz, professor na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), disse que as práticas e as visões de mundo oriundas do âmbito rural, assim como as pessoas, os grupos sociais, os objetos ou as mercadorias, se fazem presentes em qualquer cidade.
“Em alguns espaços urbanos, seus moradores se apresentam mais próximos do campo; em outros, mais distantes. Existem imaginários urbanos em que o mundo rural aparece de forma idealizada ou romântica, sem seus conflitos e contradições”, comparou.
Ele ressaltou que esse ocultamento pode esconder pontos de vista, formas de sofrimento e violências próprias do rural, mas que são mantidos longe da experiência citadina.
“No mundo contemporâneo, onde nós, que vivemos na cidade, temos – ou, pelo menos, deveríamos ter – mais consciência do que se passa no campo, é crucial pensarmos nossa relação com o rural para além de estereótipos, simplificações ou preconceitos”, aconselhou.
Cruz pontuou que a nossa dependência do campo, antes de ser econômica ou afetiva, é existencial. “Uma cidade que tem o campo até em seu nome pode se colocar na dianteira de uma nova sociedade e economia, nas quais o bio, em toda sua complexidade social e ecológica, tende a ocupar uma posição central”, concluiu.
CORREIO DO ESTADO. Capital de MS, Campo Grande é muito mais agronegócio do que se imagina. Disponível em:<https://correiodoestado.com.br/economia/capital-de-ms-campo-grande-e-muito-mais-agronegocio-do-que-se-imagina/419285/>. Acesso em: 27.Ago.2023