O professor e vereador Riverton já fez parte do grupo de crianças com as maiores dificuldades para encontrar uma família adotiva e ressalta que a educação o salvou da criminalidade
Mato Grosso do Sul é o estado do Centro-Oeste com o maior número de crianças em entidades de acolhimento. Segundo dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), aproximadamente 729 crianças e adolescentes estão em instituições ou com famílias acolhedoras.
Desde a unificação do sistema de adoção, em 2019, foram adotadas 570 crianças em Mato Grosso do Sul. Entretanto, o CNJ destaca que adolescentes com mais de 14 anos, indígenas, negros ou com deficiência são os menos procurados e acabam no fim da fila de adoção.
Um exemplo de vivência no sistema de acolhimento é o vereador Professor Riverton, que também fez parte do grupo de crianças muitas vezes esquecidas nas unidades de acolhimento. Ele foi encaminhado para um abrigo aos 13 anos, após perder os pais biológicos e a família que o acolhia informalmente, permanecendo lá até os 18 anos.
“Para mim, foi mais difícil porque, quando você já vem com uma criação dura, é uma coisa, e eu vivenciei coisas boas dos três aos 12 anos e de repente a minha vida virou de cabeça para baixo. Eu fui parar em um Conselho Tutelar, para ser destinado para um abrigo”.
Ele viveu na Casa Dom Bosco, local de acolhimento para crianças e adolescentes desabrigados, que na época funcionava no centro de Campo Grande e atendia cerca de 60 crianças.
Como foi a sua vida antes de ser encaminhado para um abrigo? O que fez com que você fosse para uma unidade de acolhimento?
Minha mãe era empregada doméstica em uma casa de família. Engravidou muito jovem, com dezesseis anos, como muitas brasileiras, era negra e infelizmente não teve o suporte da família dela.
De certa maneira, não deu suporte, era desestruturada, ela era sozinha, e eu me apeguei muito a esse casal que era da casa em que ela trabalhava. Era um casal que já tinha uma certa idade. Eles já tinham dois filhos, um estava terminando a faculdade e o outro tinha ido para o Acre, não tinha ficado aqui, e fui me apegando, me apegando, e um dia ela [mãe biológica] sumiu da casa e eu fiquei lá. E aí a minha mãe e meu pai adotivos tentaram encontrá-los. Eu acho que colocaram na tevê, divulgaram bastante, mas não encontraram.
Depois, ela apareceu de novo e me levou para Mato Grosso, em Cáceres. Eu deveria ter uns três anos de idade. Em Mato Grosso, ela foi atrás do meu pai, porque meu pai também não deu suporte para ela. A gente ficou na casa da família dele, passando necessidade, já em estado de desnutrição. A família que tinha me adotado tinha uma casa e uma loja lá em Mato Grosso. Não era na mesma cidade, mas eles pensaram em dar um pulo lá para me ver.
Então, me viram em uma situação deplorável. Aí, eles falaram para ela “olha, vamos voltar para Campo Grande, você mora com a gente e vamos levar o Riverton de volta”. Com muito custo, convenceram e ela aceitou. Chegando aqui em Campo Grande, eles se acertaram, conversaram e passaram a minha guarda para eles.
Eu confesso para você, é demagogia a gente não falar que a cor da pele não causa nada. Infelizmente, as pessoas escolhem o branquinho de olho azul, de olho verde. Infelizmente, isso acontece muito, mas esse casal que me adotou me amava muito. Então a minha referência de pai e mãe sempre foram eles, mas infelizmente o meu pai faleceu quando eu tinha nove anos, a gente morava em Porto Velho.
Ele me tinha como filho mesmo, não tenho o que falar deles. E minha mãe, quando eu tinha 12 para 13 anos, também faleceu.
Se não tem você, acha que a sua mãe ou sua irmã cuidaria da criança para você? Quando não é de sangue, é uma coisa esquisita. Eu senti isso. Hoje, eu consigo perdoar muito as pessoas, porque eu tinha elas também como a minha família, eu também só consegui avançar depois que eu vi que eu tinha que criar a minha própria família, meu pai e minha mãe já tinham partido.
E aí fiquei com um, não deu certo, fiquei com outro, não deu certo, tinha problemas como qualquer pré-adolescente tem, não fumava, não bebia, não tinha uso de droga nenhuma, mas infelizmente não deu certo.
Para mim, foi mais difícil porque, quando você já vem com uma criação dura, é uma coisa, e eu vivenciei coisas boas dos meus três aos 12 anos e de repente a minha vida virou de cabeça para baixo.
Eu fui parar em um Conselho Tutelar, realmente para ser destinado para um abrigo. Me lembro completamente, e de lá eles me encaminharam para a Casa Dom Bosco.
Foi muito duro nos primeiros três, quatro meses. Porque ali eu vivia com todos os tipos de meninos, todos os tipos. E na verdade ali a gente não era adotado, a gente era afastado da sociedade. O que a sociedade encarava de pior de todos os meninos, de todos os bairros, eu chamo de falta de oportunidade, os meninos eram bons, mas o que tinha para eles, muitas vezes, era criminalidade, entorpecente.
Então, infelizmente, a vida foi muito dura com todos nós ali, e eu chorava todas as noites sozinho, sem ninguém ver, quietinho, porque até na casa eu falava “cara, se não der certo aqui, é daqui para o caixão ou para a criminalidade”. Tanto é que, se a gente fizesse um levantamento hoje de todos os meninos que passaram pela Casa, pouquíssimos são bem-sucedidos hoje ou não estão presos ou não estão mortos, meninos e meninas. Mas um tempo depois eu fui me adaptando com aquela minha nova realidade.
Os meus educadores foram muito importantes. A educação me salvou, porque a minha referência é a educação dos meus educadores, não é educação de sala. A educação que ali me proporcionaram, o prato de comida que me davam, a cama em que eu dormia e a segurança que eu tinha de estar ali durante aquele tempo.
Durante os anos em que você ficou na Casa Dom Bosco, qual era sua relação com as outras crianças, com os cuidadores e com as pessoas que trabalhavam no local?
Bom, os meninos, depois que eu tive esse convívio, viraram meus irmãos. Inclusive, nós temos um grupo, em que a gente conversa com todos e a gente tem contato, era uma relação muito boa. Mas era um alto índice de violência entre a gente mesmo. Para você ter ideia, lá tinha mesa de sinuca, e nós tínhamos uma marcenaria lá e as bolas eram de borracha, porque era um quebrando no outro e tacando no outro. Então, assim, mas a minha relação era boa.
A relação com os que trabalhavam lá era excelente, desde as mulheres que cuidavam da limpeza e da cozinha, a gente ajudava, era muito envolvido, elas eram muito tias mesmo, muito mães.
Como era o incentivo à educação e a assistência à saúde oferecida às crianças e aos adolescentes pelo local?
Os salesianos, por mais que nós éramos meninos abandonados, estavam sempre muito preocupados com isso, porque a intenção deles era de que a gente saísse dali com qualificação profissional, pronto para o mercado de trabalho e para viver a vida.
Eles ajudavam com os custos, quem fazia o curso profissionalizante. É uma coisa que eu fico revoltado, o menor não poder mais fazer um curso de marcenaria, serralheria. Antigamente tinha, mas acabou, porque a lei agora não permite mais. Muitos dos meus amigos são serralheiros e marceneiros, trabalham com isso, uma profissão que aprenderam naquela época.
Eu sempre me destaquei, porque eu era muito focado. Tanto é que eles me deram uma bolsa no meu último ano para o [Colégio] Dom Bosco, por isso que eu estudei no Dom Bosco.
Ficando na Casa, ia até lá a pé. Todos tinham uma oportunidade, uma boa alimentação, estudos, prestavam assistência médica, tinha dois médicos dentro da Casa que já faziam atendimento, uma pediatra e uma cardiologista. E se tivesse algum outro problema, tinha assistente social para acompanhar, era perfeito.
As crianças a partir de 12 anos negras ou com algum tipo de doença são as últimas na fila de adoção. Como você se sente sabendo que faz parte desse grupo e que tem outros meninos nesse perfil que talvez nunca serão adotados?
Não só vivenciei lá, como também nunca fui adotado – fui adotado até uma época, mas, quando morreram, eu já estava com 12 anos e ninguém me quis mais. Até a família da minha própria família adotiva não quis dar continuidade na adoção. Eu acho que, se tem esses entraves, a lei acaba beneficiando as pessoas para poder fazer esse tipo de escolha.
Antigamente não tinha tanto esse trabalho psicológico, principalmente motivacional, porque você está ali e você está no fundo do poço. Eu, com uns 16 para 17 anos, estava bem triste. Por mais que você se envolva, tem uma hora que você dá uma piradinha.
Então, eu acho que é muito importante um trabalho psicológico, principalmente motivacional, um trabalho principalmente para a vida, para o encaminhamento de vida desses meninos, já que eles não vão ter essa oportunidade para trabalhar.
[São necessários] educação, trabalhar no contraturno e alguma formação para que eles fiquem mais preparados do que aqueles que foram adotados. Porque eles não podem ficar guardados. Isso para as crianças é uma motivação.
As crianças têm de produzir para que elas saiam prontas, já que são sozinhas. Se a gente não tiver o apoio do poder público para que os prepare e não os guarde até os 18 anos, se guardar até os 18 anos, vão sair para a criminalidade. A gente tem de preparar esses abrigos, realmente tem de ajudar.
Como você ficou no abrigo até os 18 anos de idade, como foi sair de lá? Você teve um preparo para as responsabilidades de emprego, casa, estudos?
A Casa me deu todo o suporte, é isso que eu falo que é a diferença: eles me ajudaram com móveis, me ajudaram no comecinho com aluguel, me deram emprego dentro da Casa, virei professor da Casa, mas eu era remunerado e me ajudaram com a minha faculdade. Eles me deram todo o artifício para dar certo.
Você já teve vontade ou já foi atrás de sua família biológica? Atualmente, como é a sua relação com eles?
Um dia, uma das tias de lá perguntou se eu estava bem, porque estava muito quieto, e eu falei que não estava muito, porque eu queria saber da minha família biológica. Ela teve uma referência, foi no quartel em que eu tinha um tio, que achou minha mãe e achou mais cinco irmãos, depois achei meu pai.
Eu tenho um convívio, mas não tenho. Sempre que eu posso, eu estou junto, presente, no que eu posso ajudar, ajudo. Mas eu tirei aquilo de dentro de mim e fui tocar minha vida.
Como vereador e uma pessoa política, quais foram as suas maiores preocupações em relação a crianças desamparadas em Campo Grande?
O que eu consegui fazer foi mandar dinheiro para o local que cuidou de mim. Com emenda, já mandei mais de R$ 100 mil no ano passado para lá. Construíram parquinho para a gurizada. O que eu posso mandar é a estrutura para que eles possam ser melhor atendidos.
Então, mandei com emenda para o Salesiano, para umas outras entidades, para a Casa Dom Bosco, que agora é no Taquaral Bosque, mandei dinheiro. Eu sempre procuro debater sobre isso, para que dê condições para esses que não vão ser adotados, mas condições não é deixar lá vendo tevê, é qualificar. Isso é importante. Foi o que salvou muita gente naquela época, a qualificação profissional.
Perfil – Professor Riverton
Riverton Francisco de Souza é graduado em Educação Física pelas Faculdades Integradas de Fátima do Sul.
Foi coordenador em projeto educacional em Nova Andradina e Deodápolis. Na Capital, atuou na Superintendência de Gestão de Pessoas da Secretaria Municipal de Educação (Semed) entre janeiro de 2017 e junho de 2020.
Em 2020, foi eleito vereador por Campo Grande, com 3.987 votos.
CORREIO DO ESTADO. “Ali a gente não era adotado, a gente era afastado da sociedade”. Disponível em:<https://correiodoestado.com.br/cidades/ali-a-gente-nao-era-adotado-a-gente-era-afastado-da-sociedade/418389/>. Acesso em: 05.Ago.2023